quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

9. o bom, o mau e o feio

De dentro do carro sai uma loura espetacular. Com cabelos a la Farrah Fawcett, recém saída das series da tarde dos anos oitenta, com uma calça branca cintura alta justíssima rachando a perseguida com uma camisa roxa e muitas. Eu disse muitas pulseiras e colares de bijuteria dourados. (sem sacanagem me lembrei de Maria Bethania na capa de Pássaro da manhã. ) Esse visual era arrematado por unhas Alcione vermelhas carmim, uma bolsa enorme de onça e uma bandeja coberta por papel aluminio. Com aquela cara de quenga ela seria professora de que? matemática? Essa era a professora de ciências, Margareth.

Uma mulher gorda obesa mórbida atravessou o portão, secando o rosto com uma toalhinha de mão. (moda que a principio me surpreendeu depois quase aderi - eu disse quase!) meia hora depois de arrastar pé na frente de pé numa demonstração de total coragem e determinação afinal aquele corpo não fora feito para andar - o que mais me impressionou foi o tamanho dos pés. Mínimos. Ela vai cair, pensei. E comecei a rezar para que isso não acontecesse. Seria uma catástrofe. Mas o que me surpreendeu de fato foi quando descobri que ela era a professora de educação física. Veroca.

Então surgiu Memeia. Que depois seria a minha melhor amiga. Ela era como poderei descrevê-la com precisão.... Era normal.

8 . a escola até que seria legal se não tivesse alunos

Sabe que a escola até que seria legal se não tivesse alunos?

Para o meu primeiro dia de aula, fiquei tão nervosa em não me atrasar que cheguei uma hora antes do marcado. Eu morava tão longe e o transito era tão maluco que ou eu chegava uma hora antes, ou me atrasava em uma hora. Não havia como ser pontual. Estava querendo causar uma boa impressão, afinal era o primeiro dia de aula - aliás de reunião pedagógica.

A dona da maior buzanfa do Brasil veio na minha direção e abriu os portões de Hades. Fiquei parada ali, olhando aquele muro enorme e pensando que podia ter um grafite ali, que seria legal juntar as crionças (opa, pela primeira vez uso este termo. acabei incorporando um vocabulário novo aqui). para pintar, para deixar aquele local com cara de... escola. Eu só conseguia olhar para o pior. Para as janelas quebradas, para a fiação elétrica desencapada, para o ventilador sem pá... Ah pensei. Estou sendo muito negativa. Só estou procurando o que há de ruim aqui. Preciso mudar meu olhar. Vamos procurar coisas positivas agora. Vamos lá. Agora.

Hummm... o que seria? Vamos procurar não pode ser tão difícil assim... Olhei para meu relógio. 8:30. Hum... o que seria? Algo de bom... Bem ter salário fixo todo mês era bom... Mas fora o salário, aqui agora.... Hum... deixa ver.... Calma... vou pensar em algo.....

Então no portão surgiu um carro vermelho. Buzinou. Eram os primeiros professores chegando. Bem ia conhecer meus colegas de trabalho... Talvez esse fosse o ponto positivo... Meus colegas de trabalho....

7. final da colonia

Perdi a voz no segundo dia de aula e passei a me comunicar com apitos e sinais. Por causa da dor de cabeça, aderi aos protetores de ouvido de silicone e à respiração iogue. Para passar o tempo, eu levava bolas e gritava: já! Essa palavra mágica fazia com que as crianças corressem, gritassem, jogassem a bola para o alto, jogassem bolas uns nos outros, corressem atrás da bola, gritassem "bola", gritassem "aaaaaaaaaaa" e eu continuasse numa mínima paz interior.

A diretora pediu que eu fizesse um teatrinho - aliás descobri que me formei em teatrinho nessa hora, sempre me pediam para "fazer um teatrinho, um jogral, sei lá qualquer coisa para passar o tempo". Podia fazer palavras cruzadas ou jogar baralho também, tanto faz. Eu aleguei que seria necessário mais tempo para isso. O teatrinho ficaria para uma próxima vez - que eu já imaginava que não existiria próxima vez.

O professor de educação física, conseguiu uma verba para alugar um som, e fazer uma festa na quadra. Aliada a verba do lanche especial - cachorro quente e refrigerante faríamos uma super festa. Fui convocada para animar a festa. Oi? Vamos lá fazer um teatrinho... Subi no palco e comecei a contar uma história para as crianças menores, o microfone ficou sem pilha, era impossível ouvir o que eu falava e tentei me esgoelar para acabar a historia para a unica criança que continuava olhando para mim. Continuava ali porque não andava sozinha. As demais foram pegar picolé que a colonia conseguiu com a associação de moradores (ou com o dono do local) não entendi direito. O fato é que chegaram dois assistentes do professor e foram para o palco. de short mínimo e as meninas de top, com os piercings todos de fora o trio (Los Angeles ?) começou a dançar no palco, causando um frisson nas crianças. O que quero dizer com dançar seria mais sacudir a bunda, fazendo agachamentos e movimentos pélvicos, a maioria de costas para o público, os frontais eram acompanhados de dedos nos lábios e mãos nos seis e genitália. Ok.
As professoras batiam palmas, a diretora batia palmas, e todos estavam felizes. Depois o professor de geografia subiu no palco e imitou o seu Peru do Zorra Total, causando uma enorme gargalhada. Minha diretora foi franca comigo: Você não imita ninguém do Zorra Total? Eu disse que não. Nem a velha surda da praça? Eu respondi que não e ela: Mas não sabe dançar essas danças bacanas? Eu disse que não e ela soltou a pérola: Mas você faz o que então?

É eu não sabia fazer nada.



segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

6. Ivan - o terrível.

6. Ivan, o terrível.

Um dia apareceu na Colônia o Ivan. Ele era pequeno demais para ficar em qualquer classe mas como suas duas irmãs maiores estavam na colônia e eram elas que tomariam conta dele, o bom senso permitiu que aceitássemos Ivan. Ele freqüentava a oficina que queria e como era muito pequeno, recebia uma atenção especial de todos nós. Ele tinha dois anos e meio e era muito inteligente. Não usava fraldas, já pedia para ir ao banheiro. Ele não falava muito porém sabia se comunicar muito bem. E era extremamente carinhoso.

Eu o conheci no banho de mangueira. O professor de educação física tinha percebido que por causa do calor, o cheirinho estava ficando bem azedo por ali e como era uma região muito pobre, decidiu fazer uma brincadeira diferente: o banho de mangueira.

A gente precisava esperar um pequeno reservatório encher e então podíamos colocar uma mangueira e “tacar água” em geral. A gente passou com todas as turmas pelo banho. Alguns ficavam de calcinha, outros de roupa mesmo. E passavam o sabonete no corpo, no rosto, era tanto sabão, sabão no olho... Tanta alegria por nada... Por um banho com sabonete... Uma coisa tão simples...

E foi aí que me apaixonei pelo pequeno Ivan. Ele fazia uma farra com a água, e ria e pulava, e corria e gritava... Nessa altura além da massa de crianças eu já conhecia algumas pelo nome. E obviamente como não sou de ferro já tinha me afeiçoado a uma boa parte delas. Inclusive as mais “terríveis”.

Passei a dar aula com o Ivan no colo. Ele era disputado a tapa mas como minha aula era mais “divertida” que redação por exemplo ele ficou a maior parte do tempo comigo. No final do dia, tínhamos formado um grupo que voltaria em direção ao centro de carro e fiquei esperando essa carona. O carro era o da diretora, portanto esperamos que a última criança fosse entregue para que a gente pudesse ir. E ninguém veio buscar Ivan e suas irmãs, Jéssica e Daiane. Ouvimos boatos que a mãe deles não ia chegar a tempo e não tinha nenhum outro responsável.

Os boatos na verdade eram de que a mãe deles estava tomando cachaça no botequim. E o que nós íamos fazer com aquelas crianças? Eu não podia deixar Ivan na rua. Eles moravam longe e então conversando com a mais velha do grupo, resolvemos deixá-los em casa aos cuidados de uma vizinha.

Entramos no carro. Nesse momento que eu tive a dimensão da pobreza daquela região. Andamos por ruas esburacadas, sem asfalto, enlameadas, por alguns descampados, o típico onde Judas perdeu as botas. E então Jéssica apontou sua casa. Mas não era exatamente uma casa... Onde vocês moram? –Aqui, pode parar o carro. Mas era um container.

Descemos, as crianças saíram correndo brincando ao redor – no quintal digamos assim – e eu incrédula perguntei vocês moram aqui? Foi quando Jéssica arrematou minha surpresa com o inacreditável: desse lado não, do outro. Aqui quem mora é Dona Lourdes.

Meu queixo caiu. Ivan, suas irmãs e a mãe cachaceira moravam na metade de um container...

sábado, 16 de janeiro de 2010

5. o piolho

O piolho.

Eu não podia acreditar que aquilo era a minha nova realidade, então volta e meia eu tinha a sensação de que vivia um pesadelo e que a qualquer momento eu ia acordar no meu quarto com meu ar condicionado e alguém ia gritar: “Você estava na pegadinha da televisão, olhe as câmeras ali”. E o choque cultural era tão intenso que meu raciocínio se embaralhava de uma forma que eu me esquecia que era neta de comunista, artista e num surto eu tinha uma visão burguesa, pequena e diria mesmo escrota do que estava vivendo e principalmente dos que estavam ao meu redor.

Eu olhei para aquela massa de crianças pardas e sujas gritando no meu ouvido “ô tia, ô tia...”. Instintivamente segurei minha bolsa com força. Me lembrei dos pivetes da minha rua, os mesmos que queriam me assaltar. Fui tomada por um sobressalto. Será que vão me assaltar aqui? É melhor guardar bem essa minha bolsa. Alguns pivetes vinham falar comigo bem de perto e eu via aquelas bocas cheias de cáries – será que essa gente não escova do dente? Aí eu saía do surto e entrava em outro. “Coitadas, essas crianças não devem nem ter escova de dente. Eu preciso ensinar esse pessoal a escovar os dentes”. Arrumar um jeito de distribuir pastas de dentes... Será que poderíamos fundar um projeto onde dentistas pudessem vir aqui... Eu já fui um dente num evento no Rio Centro. Meu amigo era o Fio dental. Estou ficando louca! Não consigo mais raciocinar. Como é mesmo a meditação budista? Nam......

Ah, acalmei. As crianças continuavam gritando pela sala. Deixei gritarem à vontade. Me lembrei de uma professora de teatro que eu tinha na escola que deixava a gente correr e gritar sempre. Fiquei olhando o relógio para ver se o tempo passava. Eu ainda não assinei o ponto! Então veio um pivete, ou melhor, um moleque, quero dizer: uma menina com cabelos desgrenhados me dizer: “Tia, vamos brincar. Eles estão fazendo muita bagunça.” Olhei para ela e pensei: “fodam-se”. Mas ela me abraçou e eu vi nos olhos que ela queria brincar. Ela gostava de mim. Ela era fofa. Qual o seu nome? Michele – ela respondeu. Toquei no rosto da Michele e senti a sua pele suave de criança e pensei como a vida de ser tão pequeno podia ser tão dura. E vi aqueles cabelos desgrenhados... Me deu uma raiva! Como é que aquelas mães não tinham o menor cuidado com aquelas crianças. Dei uma abaixadinha no pixaim dela, tirei um grampinho do meu cabelo e coloquei no dela. Assim está melhor.

Depois descobri que a mãe da Michele não ajeita o cabelinho dela porque trabalha ajeitando os cabelinhos de crianças da zona sul de segunda a sexta e deixam aquelas crianças a mercê dos irmãos maiores e dos professores. Eu vinha até aqui cuidar dos futuros empregados da zona sul. Dos futuros caixas de supermercado, do futuro subemprego. O que seria do futuro de Michele? Aí o sangue comunista voltava mais vermelho do que nunca. E pulsava com Michele, vamos brincar!!! Vamos mudar isso, Michele precisa ter uma chance na vida!

Tudo isso me deixava com a pulga atrás da orelha. E comecei a coçar a cabeça. Puta que me pariu! Será que eu peguei piolho? Fiz um rabo de cavalo e antes de chegar em casa preciso lembrar de comprar um remédio de piolhos. Ai deus!!! Eu não quero ficar no meio dessa gente fedida!

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

4. colonia de férias

A colônia de férias. Eu não tinha nenhuma informação sobre a Colônia de férias a não ser que eu deveria estar no dia e horário marcado para o início do meu trabalho. E esse dia chegou. Peguei onibus até o Terminal Menezes Cortes, lá peguei o 1132. O frescão com ar condicionado que me levaria até Campo Grande. Entrei no ônibus e fui fazendo daimoku – uma meditação budista que uma amiga acabara de me ensinar. E ia olhando o caminho.

Para uma garota criada na zona sul do rio, a avenida Brasil parece um outro mundo. E dentro do frescão com ar condicionado ficava imaginando o calor que fazia ali fora. E via as lojas, de plantas, de carros. Olhava as placas. Irajá (“Mas diga que irá ... Irajá!”) Como na Música do Gilberto Gil. Minha tia nessa época ainda morava no Irajá e eu pensava que ia ser bom trabalhar tão longe porque eu ia poder visitar minha tia na volta do trabalho – coisa que não fiz mas imaginei por anos. Complexo do alemão... Nossa esse eu só tinha ouvido falar por jornal. Lembrei das noticias de tiroteio e me deu um certo medo de ficar no fogo cruzado, de bala perdida. E assim fui...

Duas horas depois, cheguei no posto Moranga. Comecei a entrar na Carlotinha. Logo na entrada haviam os moto boys. Resolvi me identificar e por medida de segurança eu achei melhor ir de moto boy. Falei que era professora recém contratada e que precisava chegar na escola. Montei na garupa do motoboy e pedi para que ele fosse bem devagar. Pedido que foi completamente ignorado. Cheguei despenteada mas com vida na escola municipal. Paguei um real ao moto boy e fui até o portão.

O primeiro dia era uma reunião para explicar a proposta pedagógica da escola, da colônia... Principalmente organizar os horários. Eu fiquei com as segundas e quartas – o dia todo. Manhã e tarde. Fui apresentada ao auditório. Era um galpão comprido, com 4 ventiladores e no fundo um mini palco italiano desses que só um arquiteto que não entende nada de teatro poderia fazer. Na verdade eu diria que o fundo da sala foi suspenso com um tablado de cimento e tinha uma escada na lateral para subir ali. Eu preciso confessar que essa tentativa teve um mínimo de cuidado já que atrás do palco havia uma mini sala chamada de camarim. Pensei que aos poucos podia montar uma arara, criar condições para fazer um trabalho lindo ali mas lembrei que ali não era a minha escola, era só a colônia...

Bem, as condições de trabalho são dignas, pensei. Um pouco quente. Bem quente na verdade mas fiquei ali por apenas 5 minutos e não tinha dado para perceber o tamanho da sauna. Esse prédio o “auditório” era um anexo. Fui conhecer o resto da escola que era um prédio pequeno de três ou quatro andares. Um bom prédio com rampas centrais que levavam as salas de aula. Pequenas, todas com ventilador, pintadas, com as carteiras novas. Carteiras de criança. Afinal a escola era para uso do ensino fundamental 1. ( O ensino fundamental 1 é o antigo sistema de primeira a quarta série. Alfabetização, c.a. Já foi chamado também de primeiro ciclo. Enfim, esses nomes são trocados a todo tempo.) Uma graça. Depois descobri que a escola estava sendo inaugurada com a colônia. Meses depois a escola já devia estar com um aspecto quebrado, como quase todas as escolas municipais. Atrás do prédio havia a quadra de esportes. Coberta, pintada. Uma quadra de esportes com cara de quadra de esportes. Ah eu queria trabalhar ali e não na escola que eu havia sido escalada. Que diferença.... Saí de lá com a esperança de realizar um trabalho revolucionário, libertário, criativo...

No dia seguinte começariam as aulas. Quando cheguei no portão, já havia um pequeno tumulto - diria até o início de um empurra-empurra entre as mães e crianças do local. Com uma certa dificuldade me enfiei no meio do grupo para chegar até o portão. Algumas mulheres me olhavam com cara feia de quem estava tentando furar a fila mas não precisei me identificar como professora, alguém falou: “Deixa a professora passar”. Agradeci e passei. Me perguntei como sabiam quem eu era. Mas não era difícil identificar a patricinha da zona sul no meio da comunidade. Era visível que eu não era dali. Eu era um ET.

No portão, esperei um pouco apertada que viesse alguém da secretaria abrir a grade para que eu entrasse. Uma senhora já bufando de calor abriu a porta e pediu que eu me encaminhasse para a diretoria para assinar o ponto. Assinar o ponto é uma obsessão. Ninguém bebe água antes de assinar o ponto. O ponto é um papel que vc rabisca. Ele prova que você esteve ali e que estará tudo em ordem com o seu salário. Se você não assinar o ponto, ninguém pode provar que você trabalhou. Entendi isso e logo fiquei obcecada com o ponto. Cadê o ponto? Já assinei o ponto?

Estava sendo oferecido um café da manhã para os professores. Café com leite, maçã e pão com manteiga. Já tinha comido. Mas peguei a maçã. Recebi a minha lista de chamada. E meu esquema de trabalho era o seguinte: Eu tinha 5 grupos de trabalho. Cada um ficaria comigo por volta de dois tempos. Duas horas aula de 50 minutos. Os menores eu deveria levar para a próxima atividade para fazer a troca de turno. Mas como eu não sabia onde eram as salas, quem eram os outros professores, ficava segurando a grade de horários como se fosse o mapa do tesouro.

Bem, chegaram os alunos. Fiz a chamada. Era um grupo mais velho. Os de dez anos. Formamos uma roda, aprendi o nome de alguns deles e começamos a aula. Eu tinha programado alguns jogos teatrais bem simples e divertidos. A aula estava indo bem até que começou uma dispersão crescente. Em menos de 15 minutos de aula eu já me vi no meio de um grupo de 40 crianças correndo e gritando aleatoriamente como que num surto coletivo. E começou meu suplício. “Gente, vem cá, junta aqui! Ei, você de azul...” Em menos de meia hora eu já tinha perdido o controle daquelas crianças e então elas partiram para a agressão física... Aprendi o que era móca e montinho. São duas brincadeiras infantis modernas. A primeira consiste em dar um cascudo de mão fechada e com gosto no cucuruco do colega e sair correndo rindo. O montinho já é uma brincadeira mais coletiva. O grupo se joga literalmente por cima de um infeliz escolhido qualquer – geralmente o mais chorão - como se estivessem num jogo de futebol americano. Eles formam um “montinho” de 15 em cima de um que invariavelmente se machuca com o excesso de peso. Chocada ouvi a sineta tocar. Sineta que avisava que estava só na metade do tempo com aquele grupo. Saquei da minha canastrinha de idéias um jogo sensacional, que todos participam e que é um pouco longo. Sucesso total. Nessa altura minha garganta já doía. Não há aula de fono ou projeção vocal que te faça ser ouvida por 40 crianças gritando a não ser que você grite também. A outra opção é ficar muda, olhando, apagar a luz, fazer climão... Lembrei de alguns professores meus que usavam esse recurso chatérrimo. Mas não machucava a garganta.... Pensei em levar um apito nos próximos dias. Tentei o recurso da estátua... Gritava estátua e pretendia que eles participassem da brincadeira... Eu tentei de tudo. De tudo que sabia. De tudo que lembrava. Eu tentei.... Outra sineta. Alívio. Sai o grupo num animação. Alguns vieram me abraçar. Outros gritaram: Tiau professora! Gente, para minha surpresa eles tinham adorado a aula. Alguns saíram repetindo a brincadeira que eu tinha feito e fiquei conhecida com a professora do Bip Bip...

Parada para almoçar e o primeiro baque. Dentro de um prato de plástico, arroz, feijão e frango ensopado. (Já não sou muito chegada a frango ensopado, mas vamos lá). Me deram uma colher para eu comer. Eu queria um garfo por favor – pedi para a senhora que era merendeira da cantina. Ela me explicou que não tinha garfo muito menos faca. Ela falou assim: “Só tem colher minha filha.” E riu. Ela não estava sendo antipática, mas estava quase me dando um toque para eu não ter frescura. Peguei meu prato, minha laranja cortada em quatro, sentei na mesa e percebi moscas voando. Me bateu um mal estar... Me senti uma presidiária, uma interna de hospital psiquiátrico. Fiquei falando para mim mesma: deixa de frescura! Ah, tudo tem limite... A comida me caiu mal. Fui para um canto fumar um cigarrinho e anotei: preciso separar um jogo de talher para deixar na bolsa.

Depois do cafezinho, voltamos e foi uma repetição da manhã. Mais intenso já que o calor havia aumentado, as crianças estavam mais agitadas e eu mais cansada. Minha garganta queimava, estava quase afônica. No final do dia, caminhei com outros professores até o ponto de ônibus. Descobri que era das raras que morava tão longe. Eu em ipanema, uma na Tijuca e outra em Maria da Graça. Fora isso a maioria morava ali perto em Campo Grande, Realengo, Bangu, Deodoro... Fui aconselhada a não andar de moto boy, que não era seguro. Meu ônibus chegou rápido e exausta eu praticamente desmaiei, só acordei no ponto final. Nossa que dia! Mas pelo menos eu tinha assinado o ponto.

domingo, 13 de dezembro de 2009

3. A escola

Olhei a escola. Cinza. Era uma construção pré-moldada dessas que são criadas em caráter emergencial e que depois deveriam ser substituídas por prédios escolares. Estava ali há 20 anos. Eu não queria acreditar que passaria parte da minha vida ali mas uma placa confirmava essa expectativa: ESCOLA MUNICIPAL CLARISSE LISPECTOR. Gelei ao ler isso.

O portão gradeado e trancado por uma corrente me deu a sensação de olhar um presídio ou pior, os Portões de Hades. Me aproximando do portão, não vi viva alma naquele lugar. Sussurrei um "o que é isso!" então olhei para o meu pai já transformado numa poça vermelha de suor e calor, desta vez com os olhos arregalados mas para não perder o otimismo tentou com a última de suas forças soltar um: “É ótima a escola.” A voz dele não tinha nenhuma – nem uma mísera gota de convicção. Aquela frase Poliana soou constrangedora. Fiquei parada olhando - como dizer... - aquilo e não via vida naquele lugar. Não tinha luz acesa, nenhum movimento, nenhum barulho, nenhuma porta destrancada. Cansada e com ímpeto de desistir lancei mão de um: “Não tem ninguém aqui, vamos embora”. Meu pai se lembrou das palavras da secretária "Você tem que se inscrever na escola hoje" ficou apavorado que eu botasse tudo a perder por não assinar um papel e naquela altura do campeonato por causa da burocracia eu morresse na praia. Então com animada fúria começou a bater palma como os antigos “Ô de casa!”. Funcionou.

Não demorou muito e veio uma senhora loira sorridente e com uma dos maiores quadris que eu já tinha visto em toda a minha vida. Dona Bolota era inspetora da escola e morava no local. Em uma mínima sala com cozinha ela vivia com o marido e em outra sala (equivalente a meia sala de aula) era o quarto do seu filho. Ela também tinha alguns cachorros – que ela adorava mas que eram feios por demais. E que eventualmente mordiam alguma criança na escola. Mas isso é um capítulo a parte.

Entrando na escola pude observar que atravessando o portão, havia uma construção comprida, na entrada da escola, esse anexo à esquerda onde deduzi haver 4 salas. Esta construção destoava do resto da escola por ser.... uma construção normal, não era pré-fabricado. Essa diferença dava aquela construção uma cara de casa normal. tinha porta e janela. Janelas que davam para o muro da frente que era baixo. Janelas que ficariam fechadas para todo o sempre. Apesar do sufocante calor. Era melhor janela fechada que venda de mariola e outras coisitas más em plena luz do dia.

Em seguida reparei na enorme árvore com uma sombra que me pareceu um oásis naquele deserto ficava entre esse anexo e o começo do prédio original da escola. Depois eu descobri que era uma mangueira. Não consigo identificar uma árvore da outra, e isso já foi motivo de piada entre meus alunos.

Atravessando esse pátio, à direta ficava uma quadra de esportes. Ou melhor, um quadrado de cimento com duas traves de futebol que chamavam de quadra de esportes. O sol estava a pino e ali não batia nenhuma brisa. Aquele ar parado e seco que baixa a pressão e deixa a gente zonzo. Fiquei imaginando como um professor de educação física poderia ficar o dia inteiro trabalhando ali debaixo daquele sol. Me pareceu criminoso deixar alguém ali sem protetor solar e sombra. Os professores de educação física ganham adicional por insalubridade?

Na minha frente agora aparece uma parede de grades. Vamos atravessar essa segunda camada de grades que leva ao interior da escola. O interior da escola era escuro. Muito escuro. O próprio inferno, só que mais fresco. Um hall bem comprido decorado (decorado é o termo?) com dois bancos de cimento na lateral direita (desses que a gente vê nas praças) – que durante o período letivo seriam ocupadas pelas bundas gordas das mães desocupadas da comunidade. À esquerda, uma área fechada bem grande que servia de refeitório. Afinal tinha uma porta com uma placa refeitório.

Bem em frente a este corredor, uma sala aberta com a luz acesa e uma senhora mulata de óculos, alegre e sorridente me saudou com uma voz potente: “Você deve ser a nova professora de artes. Sou Florinda a diretora da escola.” “Sim, sou eu mesma. Meu nome é Patricia, esse é meu pai.” Meu pai sacou um lenço, deu uma belíssima enxugada no rosto e fez a linha simpaticão. Apresentei meu pai e disse que ele me fazia companhia por causa da contratura muscular, que eu tinha machucado a coluna. A diretora deu uma enorme gargalhada e completou: "Ah menina, esse colete aí é para coluna? Achei que era colete a prova de bala!" , "As pessoas usam colete a prova de bala por aqui?" disse rindo como uma piada. A diretora rindo mais alto ainda perguntou: "Você mora onde?" Eu respondi pela primeira e última vez: ipanema. "Ah, garota de ipanema. Tem cara mesmo. Ih você vai estranhar muita coisa por aqui. Vai achar pitoresco".

Meu sangue comunista misturado com a educação classe média burguesa fez uma salada emocional temperada a mimos de filha única e antes que eu respondesse qualquer coisa à altura, meu pai antevendo que eu estava ficando irritada e que o clima poderia esquentar e eu ainda não tinha assinado nada, se meteu na conversa agiu como um bom advogado de conciliação. Passando a mão no ombro da Dona Florinda (ai estou me sentindo a Chiquinha do Chaves agora), mudou drásticamente de assunto dizendo que a escola era ótima, muito limpa, que as paredes estavam bem pintadinhas e (pasmem!) Admirado de como era fresquinho lá dentro. D. Florinda sorriu. Meu pai estaria cativando-a Saint-Exupéry? Eu fiquei muda. Olhava ao meu redor e nada que ele falava me parecia possível. Ele estava num mundo paralelo? Fiquei perplexa.

No final deste hall, havia outro corredor transversal onde ficavam as salas de aula da escola. Seis salas para o lado direito (sendo três de cada lado do corredor) e para o lado esquerdo víamos outras salas – depois soube que eram as de vídeo, a dos professores, uma despensa, a casa da D. Bolota e os banheiros (4 no total. O de alunos separado em Feminino e masculino com 5 reservados cada e separado os banheiros dos professores. Um feminino e outro masculino cada qual com reservado e ducha).

Saí do profundo silêncio quando falei que estava com sede. A diretora apontou um bebedouro. Senti um nojo! Profundo nojo. Não queria colocar minha boca ali mas nem f... Só que eu não podia fazer a linha “fresquinha” logo de cara e causar um má impressão. Já antevia que seria chamada de a garota de ipanema por algum tempo. Meu pai vendo minha reação, faceiro soltou um “Ah que ótimo, vou beber também.” E foi até o bebedouro. Acionou a água. Um jato minguado saiu de lá. Desses que gente tem que colocar a boca bem perto e onde os mais nojentos chupam a água como se a torneira fosse um canudinho. Meu pai bebeu aquela água e ainda comentou: “Humm, está geladinha!”. Vem Patricinha. Vem! O tom de voz era o mesmo. Era a voz do Parque Guinle. Lá ia eu quebrar meu nariz novamente. E assim fui eu respirando fundo para dar um golinho naquela água. Vou acabar pegando hepatite aqui – pensei.

Depois de finalmente assinar a papelada e ouvir as saudações de boas vindas super animada da minha diretora, fui comunicada que eu precisaria voltar no dia seguinte só para assinar o ponto. Então eu levaria 2 horas e meia para assinar o ponto e mais duas horas e meia para voltar. Perderia meu dia inteiro SÓ par assinar o ponto.

Afinal não tinha nada para fazer na escola mas meu horário já contava desde aquele momento. Meu horário eram 16 horas semanais, onde deveria cumprir 12 em sala de aula e 4 na escola para reuniões, provas e principalmente para bater o ponto. A hora aula era de 50 minutos. Ou seja 16 horas para um professor na verdade são na verdade 13 h e 20 minutos. Como o turno tinha 6 tempos de aula, eu poderia fazer meu horário em dois dias e meio ou dois dias (de absoluto cabo a rabo, sem respirar nenhum tempo). Dona Florinda também me ofereceu uma meia dupla regência (6 horas aula extras por semana) – já que a escola tinha déficit de professor de artes. Eu trabalharia apenas três dias na semana e ganharia um pouco mais do que o salário inicial. Parecia uma excelente proposta. Achei ótimo. (Não sabia o que estava por vir) ...

Também fui comunicada que deveria participar da Colônia de Férias da região se quisesse ganhar meu salário de janeiro. Que esta colonia começaria na primeira semana de janeiro e que duraria o mês todo. Eu teria menos de 15 dias para me preparar para o trabalho. Mas não era opcional. Era obrigatório.

Sentindo que acabara sua missão, e para me tirar do estado de choque e da inércia, meu pai começou a se despedir para ir embora. E sugeriu que eu usasse o banheiro, afinal a viagem de volta era longa. usou "aquela voz". Me dirigi ao banheiro dos professores e a diretora gritou: "Vem pegar a chave". Voltei e me deparei com um pedaço de tubo de PVC marrom cuja ponta, amarrada por um arame enferrujado, pendia uma chave. Por segundos eu estranhei aquele objeto. Mas sabia o que era aquilo. Afinal sou freqüentadora de botequins e de pés sujos. Mas não reconheci de cara por estar totalmente fora do contexto. Isso é um chaveiro de boteco! Espero que o banheiro não seja também um banheiro de boteco. Lá vamos nós! - Tomei coragem e fui.

Passei pelo banheiro dos alunos e senti um cheiro azedo encruado. Fui até o banheiro das professoras e abri a porta. Ufa! Era decente. O chão não era de cimento como toda a escola, era de cerâmica. Na parede não tinha azulejo mas era “bem pintadinho” como meu pai havia dito. Uma pia com espelho e um reservado, além de outro com a ducha. Alguém toma banho aqui? Bem, deixa para lá. Fiquei feliz por ter papel higiênico. Fiz xixi numa posição quase de pé, dei descarga num cordãozinho que puxei e fui até a pia. Não tinha sabonete. Nojo. E se eu tivesse que fazer cocô ali? Nojo. Ainda bem que eu sabia como agir, afinal no boteco também não tem sabonete. E eu como pastéis que são fritos lá. Ai que nojo. Vamos lá... Passei bastante água nas mãos, esfreguei bastante e sequei a mão na calça jeans. Tranquei a porta e saí de lá. Anotei no meu caderninho da hello kit: Dica numero 1) preciso montar um kit higiene com lenço de papel, sabonete, toalha, escova de dente e pasta.

De volta à sala da direção, meu pai e a minha nova diretora já pareciam amigos de infância conversando às gargalhadas. Meu pai está rindo de quê? O que há aqui para rir? Eu estava quase chorando. A diretora então falou para eu assinar o ponto da semana já que eu morava muito longe e estava com a coluna machucada que não era necessário eu voltar naquela semana e piscou para o meu pai que me olhou com cara de "eu não tenho nada a ver com isso". Bom senso de D. Florinda ou “jeitinho” do meu pai?! O que importa é que gostei dela por essa atitude. Depois a adorei cada vez mais. É uma leoa tentando manter as rédeas incontroláveis daquele lugar. Além de ser generosa e preocupada com todo mundo. Saí de lá com um mini sorriso de alívio, dois beijos na bochecha e um: “Seja bem vinda!” animado de Dona Florinda que ainda arrematou: Seu pai é ótimo! e piscou novamente para ele. Nunca comentamos nada a respeito disso. Papai se despediu radiante, tinha cumprido seu papel de simpático e eu assinei o tal papel.

Dona Bolota reapareceu da escuridão e foi arrastando sua enorme buzanfa até a grade e abriu o portão para a gente sair. Já do lado de fora há alguns passos dali meu pai sorriu e me falou: “É ótimo aqui. Adorei a escola.” Eu o fuzilei com um olhar achando que ele só podia ter falado aquilo de sacanagem e perguntei como a gente ia embora dali. ele deu uma corrida e chamou a rainha da buzanfa novamente. Que de onde estava apenas se virou e aos berros explicou que devíamos seguir pela esquerda aquela rua até a altura da padaria e então virar para a direita e que essa outra rua ia dar na Avenida Brasil. Então ela perguntou para onde a gente estava indo. Já tinha percebido que ser a Patricinha, garota de ipanema naquele lugar não era uma coisa positiva e adotei a resposta que usaria daqui para frente quando me perguntavam onde eu morava: No centro!

D. Bolota arrematou que era para a gente atravessar a passarela e pegar o ônibus do outro lado da Brasil. Eu estava do outro lado do Brasil.

Fomos andando pela rua e eram casas muito simples, não havia asfalto nem calçada. Alguns raros carros – desses que não passam na vistoria do DETRAN – capengados com pessoas segurando portas ou amarrados com barbantes circulavam em alta velocidade. Seguimos por alguns minutos até chegar na tal padaria. Então chegamos a rua principal do lugar. Alguns moto taxis e uma pequeno comércio. Dali podíamos ver a outra escola – onde seria a colônia de férias. Era o único prédio do local, muito fácil de identificar. Papai ia falando coisas do tipo: “Que casa amarela bonita!” ou “Nossa a padaria é bem vermelha”. Acho que me tentava me dar dicas para lembrar do caminho quando eu voltasse para dar aulas e não me perdesse por ali.

Já na Avenida Brasil, o ponto de ônibus ficava na altura de um posto de gasolina. Meu pai: anota o nome desse posto que é para avisar pro motorista do ônibus onde você quer descer e não se perder quando vier trabalhar. Antes de atravessar a passarela comecei a ver as peculiaridades do local. Muitas bicicletas estacionadas na base da passarela. E motos cruzando a passarela normalmente.

Afinal como não tem transporte público ali as únicas opções são moto táxi e bicicleta. Para quem tem disposição. Para quem não tem porque está doente ou é idoso, o negócio é ficar em casa.

Atravessei a passarela. Morro de medo de passarela. Tenho um pouco de vertigem. E atravessar a Avenida Brasil para mim era como uma atravessar uma montanha russa. Me causava a mesma sensação. Antes de cruzar a passarela, olhei para trás. Ali do alto é que tive a dimensão do lugar que estava. Enorme. Um sem fim de casas de tijolos... Tudo muito pobre. Então subitamente eu compreendi: “Papai, isso aqui é uma favela!”

sábado, 12 de dezembro de 2009

2. O que é preciso fazer para se tornar uma professora?

A vida de atriz não é nada fácil. O dinheiro é muito curto e as propostas de trabalho são eventuais. Se durante alguns meses eu ganhava um bom (na época eu achava bom) dinheiro participando de algum evento, outros tantos meses eu ficava em casa gastando aquele dinheiro todo (O que era rápido e fácil). Ficar desempregada e desesperada para mim era um estado normal. Para acabar com essa montanha russa financeira resolvi ter um plano B.

Não, eu não estava bêbada quando achei que a solução da minha vida seria virar professora municipal. Essa idéia foi do meu pai. Ele estava bêbado. (E lançou aquela típica ideia como pimenta no cú alheio). Os pais deveriam ser pessoas mais velhas, mais vividas, com uma percepção maior da vida. Assim eu pensava. (Até meu filho nascer) Meu pai conseguiu me convencer que fazer um concurso público era o melhor para mim. Eu teria estabilidade, salário todo mês, décimo terceiro e benefícios. E que já era hora de eu ter um emprego “decente”.

Quando você está desempregado, deve deixar sua dignidade de lado. preferencialmente ao lado do telefone, pegar sua agenda e avisar a todo mundo (que você mantenha boas relações) que você está topando qualquer parada. Dependendo do seu currículo qualquer parada pode ser: faxina, manicure, cuidar de criança, garçonete, babá de famoso, produção de teatro, projeto-escola, evento, teatro empresa, operação de som, de luz, assistente de maquiagem... Bem, eu já fui mosquito da dengue dentro de um ônibus em São Gonçalo.

A outra opção é procurar nos classificados um emprego “decente” no jornal. Essa é a opção para mim que é a mais vexatória. Acaba com a tua estima. Porque você descobre que seu Bacharelado em Artes Cênicas que demorou 5 anos para ser concluído vale menos que um curso técnico em datilografia (e estamos falando de 1993 onde este curso já não servia mais para nada). Ou seja, eu fiz um Bacharelado em porra nenhuma! É como se eu tivesse parado os estudos no ensino médio. Vamos ser humildes e ver o que o jornal tem a oferecer de nível médio. Vamos ver as opções: operador de telemarketing, secretária e puta. Humm... Nada legal. Um professor de teatro me contou que um dia ele andava por Copacabana e viu uma amiga que era bailarina clássica maravilhosa - que já tinha dançado no mundo todo mas já tinha uma certa idade - chorando no meio fio. Ela disse que no desespero do desemprego fez um teste para bailarina Go Go Girl na Prado Junior mas que não havia passado porque era “magra demais”.

Eu mesma, uma vez fiz um teste para um musical chamado “Band Age” estava na faculdade e o teste saiu no jornal. Fomos todos. No musical tinha uma personagem gorda, além disso eu já tinha montado esse musical no Teatro Amador e tive certeza: era para mim. Afinal eu já sabia as músicas de cor, tinha uma boa noção de dança e ia arrasar. Chegando lá no teste, mais de 300 pessoas para apenas um personagem do elenco principal – o resto seria teste para coro. O auge da humilhação quando a diretora me disse assim: “Querida, estamos precisando de uma gordinha e você é linda!”. O que? A vida toda tinha sido chamada de gorda e agora que eu precisa ser gorda eu era linda?? Comecei a gritar:”Mas eu sou gorda, olha aqui meu pneu! Eu tenho barriga! peso 58 kilos e tenho um metro e cinquenta e nove de altura, nem um metro e sessenta eu tenho!” Só de lembrar me dói! Que vexame...

O primeiro passo para concretizar minha ida para o inferno foi voltar para a escola e fazer aula de Licenciatura. Eu fiz uma Licenciatura Especial em Artes. O quesito básico era o bacharelado em Artes Cênicas, Música, Artes Plásticas e seus derivados como Design, Comunicação visual e etc. Essa galera era 90% da turma. A maioria das pessoas ter passado por experiência parecida – se lembrar de algum colega que ficava desenhando enquanto o professor dava aula, certo? Pois bem, essa turma era composta DESTES alunos. Todos desenhavam o tempo todo... Eu não queria ficar atrás e ficava fazendo minhas garatujas (Garatuja é um termo técnico para rabisco aleatório – termo este que aprendi na licenciatura e que uso agora exemplificando para quê esse curso serviu: Serviu para eu falar garatuja e achar que tiro onda com quem está lendo agora).

Garatujei durante um ano inteiro e ao final do curso saiu uma enorme convocação para dar aula no município. Direto. Estou com sorte, pensei na época (hahaha). Eram muitas vagas para professor de Artes Cênicas. (hahahaha)

Praticamente todos os alunos da minha faculdade fizeram a prova. Praticamente todos os alunos que passaram pela minha faculdade em épocas distintas fizeram essa prova. e era uma prova bem mal construída, antiga, dessas de decoreba de múltipla escolha e onde eu fiquei bem acima da média. Me achei um gênio e esperei o resultado da prova de redação. Esta prova de redação... acabou comigo... Me lembro que o título fazia um paralelo entre o Lula Presidente e a escola. Qual opinião dar sobre isso? Tive vontade de escrever que escola não servia para nada afinal já sabemos onde Lula chegou. Mas lembrei que podíamos ter resquícios da era Fernando Henrique e a valorização da formação universitária e fiquei sem saber o que falar e na dúvida saí falando um monte de merda, fiquei em cima do muro, não sabia o que eles queriam que eu pensasse e tentei dar uma enrolada básica. O que me garantiu uma nota péssima. Mas o suficiente para passar. Muita gente é reprovada, acredite se quiser.

Quando você se inscreve neste concurso, você de antemão marca com um x o local (ou melhor a CRE – Coordenadoria Regional Educacional) onde você pretende trabalhar. Marquei o x na segunda CRE que fica perto da minha casa. Porém este raciocínio foi seguido pela maioria esmagadora das pessoas, tornando uma vaga nessa CRE mais difícil do que passar em Medicina numa Universidade Federal. Fui recolocada numa lista geral que junto com minha nota merda de redação me garantiram um lugar na 9 ª CRE – (Campo Grande). Leia-se longe para caralho.

Tremi nas bases. Tinha passado. Era isso que eu queria, mas Campo Grande? Nunca tinha ido a Campo Grande e muito menos imaginava o que estaria por vir. Só sabia que Campo Grande era longe e grande. Minha reação foi seguida de uma contratura na coluna que me garantiu uma semana de repouso absoluto. E mais duas do uso de um colete imobilizatório que me deixava como uma policial do bope.

Pois foi no meio do repouso e ainda em choque que recebo o maldito telegrama com a data da convocação para assumir meu posto de professora. Meio aleijada, usando o colete e acreditando que ser o orgulho no papai me traria uma carona de taxi – convoquei Seu Arlindo para ir comigo tomar um drink no inferno. Ele ficou felicíssimo – disse depois eu ter passado nesse Concurso foi a melhor notícia do ano para ele (que ano de merda papai teve, pensei) – e resolveu ir comigo. Mas não fomos de taxi. Ele queria que eu aprendesse o caminho para voltar lá.

Papai tentava animadamente me mostrar a maravilha que seria ir de ônibus para Campo Grande. Que eu poderia levar um livro, ou um cd (Ainda usávamos walkman em 1995?), que eu podia ler uma revista, meditar enquanto utilizava o maravilhoso transporte público da nossa cidade. de colete!

Precisava chegar no local (pqp ou centro de Campo Grande) às nove da manhã, por isso acordei às 6 e meia com um orgulhoso pai me oferecendo café. Para mim ainda era noite afinal nessa época não dormia antes das 3. Bem grog de sono e anti-inflamatório, peguei meu colete imobilizador, apoiei o braço no papai e partimos em direção ao metrô até a Carioca de onde partimos para o Terminal Menezes Cortes. Papai queria apresentar a minha nova realidade. Ali comecei a ficar tensa. Aquele cheirinho de xixi... Aquela gritaria, aquele corre-corre, aquele barulho ensurdecedor de ônibus e o gás carbônico bombando no meio da minha cara já preta de fuligem! Eu andava como um zumbi - em choque anestesiada e meu pai animado me chamando. Lembrei da ribanceira do Parque Guinle. "Vem Patricinha!" Aqui é o ponto final do ônibus 1266. Centro - Campo Grande. Esperamos de 15 minutos a meia hora até que chegar o ônibus. Já havia uma fila de pessoas atrás de nós e um mini empurra empurra na hora de subir para o ônibus. (Note que estamos falando de um ônibus com ar condicionado, bem mais caro, menos procurado mas igualmente lotado) Entramos nele e meu pai anotou os horários de saída daquele ônibus para eu me organizar. (Para que anotar os horários se ninguém os cumpre??) Eu nem respirava, virei uma estátua.

Uma hora e meia depois chegamos ao local indicado - a sede da tal 9 CRE. Lá encontrei algumas amigas da faculdade – todas felizes de terem passado no concurso (depois encontrei as mesmas amigas em outras ocasiões e TODAS estavam arrependidas todas de licença, pensando em pedir exoneração). Então chegou o momento mais aguardado por mim. O qual eu deveria escolher minha escola. Eu tinha algumas ao meu dispor mas nenhuma referência de nenhuma delas. Era uma escolha cega. Os que optaram pela 9 CRE e que já conheciam o local, e que tinham notas melhores que a minha nota merda optavam na minha frente, escolhendo as melhores escolas (acredite se quiser, ainda tinha gente que tirava menos que eu e que ia para a 10 CRE - Santa Cruz).

Me senti como no programa Domingo no Parque do Silvio Santos – eu era a criança da cabine em frente a uma luz vermelha ouvindo música alta sem ouvir o que Silvio perguntava apenas respondia sim ou não a cada vez que a lâmpada vermelha acendia. Pergunta o Silvio: “Você quer trocar essa magnífica bicicleta por uma escova de dentes usada?” “Siiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim!”. A pergunta para mim foi: “Qual escola você quer ir?” Eu expliquei que morava no Flamengo e que não conhecia nada de Campo Grande mas que adoraria ir para uma escola que tivesse sala de teatro e que fosse fácil para eu chegar. E perguntei se ela não poderia me indicar uma escola legal boa de trabalhar. Santa ingenuidade! Eu falei que não conhecia nada de Campo Grande. Agora vejo que a secretária vira na minha ignorância uma chance de locar (enfiar no cú em terminologia educacional) essa trouxa que vos fala numa escola onde ninguém queria trabalhar e onde nenhum professor de Artes parava. Imagine o nível da escola!!!!!! Ela perguntou se eu não gostaria de ir para a Clarisse Lispector, disse que era perto da Avenida Brasil e que eu não precisaria nem entrar em Campo Grande (que tem esse nome exatamente porque é grande, aliás enorme). Mas a escola é boa? perguntei eu... Santa ingenuidade batman! Só agora compreendo os risinhos da secretária que estava locada (ou enfiada) ao lado. Foi então que ouço uma voz (acredito que era do demônio) a falar: a escola é ótima, eu mesma dei aula lá por vários anos. Você quer ir para a Escola Clarisse Lispector? Voltamos ao cenário do Domingo no Parque. Estou dentro da cabine. A lampada acendeu e eu gritei: Siiiiiiiiiiiiiiiim! Pararará, pararaá agora é hora de alegria, vamos sorrir e cantar... do mundo não se leva nada, vamos sorrir e cantar.... Obrigada Silvio! Obrigada Domingo no Parque!

Rapidamente barulhos de carimbo, tatá tatá... a burocracia funcionando e papéis para eu assinar. Muitas vias. E mais carimbos. Finalmente o trâmite estava concluído. A Secretária foi categórica: você não pode mais trocar de escola. Deve se apresentar nela agora e aqui está o endereço: Rua Volskwagen sem número – Carlotinha.

Agradeci por pura educação, peguei meu suado e feliz papai – afinal Campo Grande é um calor dos infernos – compramos água mineral e fomos procurar um ônibus para ir à tal Rua Volskwagen. Não havia. Estranho não é? É... Estranho, muito estranho. E fomos perguntando para os funcionários da CRE como chegar até lá só que ninguém sabia. Estranho não é? É... muito estranho! Retornei à Secretária carimbadora que explicou que a van para a Carlotinha passava na porta da escola. Por uma van leia-se uma Kombi ilegal. Mas onde pegar essa van kombi ? Na rodoviária ela respondeu. Fomos até a rodoviária de vans ilegais de Campo Grande. Perguntei para um senhor qual era a van que eu deveria pegar para a Carlotinha, ela apontou uma estacionada numa garagem. Fui até lá. O motorista da van kombi ilegal me disse que não conhecia essa rua Volkswagem, que nunca tinha ouvido falar nela e me perguntou o que eu ia fazer lá. Estranho não? Disse que ia para a Rua Volskwagem mas sabia qual era essa rua. Disse então que era professora e iria para a escola municipal Clarisse Lispector. Só então ele relaxou e sorriu: “Entra aí! Achei que vocês eram da polícia!"Oi? Palavras ao vento? Delírios de um motorista? Entramos naquela Kombi suja, enferrujada e lotada onde papai e eu chacoalhamos até a Carlotina. Nessa altura meu pai já era uma poça de suor, vermelho como um tomate e tentando manter um mínimo de dignidade naquela van. Tive sincera pena dele. Minha coluna quicava no imobilizador. "A senhora usa colete a prova de bala?" perguntou o cobrador da van. Não meu filho, é um colete para a coluna.

Continuamos chacoalhando, agora por uma estrada de terra sem asfalto e a kombi parou. Chegou professora. Chegou onde, se estávamos no meio do nada? Saímos da Kombi. Fiquei perplexa. Nessa altura do campeonato eu já imaginava que havia algo de muito podre no reino da Dinamarca mas ainda não precisava exatamente o quê.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

1. meu jardim de infância

O que leva uma pessoa a ser professora?

Quando eu era pequena, juntava as minhas bonecas e brincava de professora. Enfileirava a Barbie, a nenezinha, a Suzy e montava a sala de aula. Eu tinha um quadro verde e escrevia coisas sem sentido com giz colorido. Criava provas, fazia perguntas, arguições, gritava com as bonecas, chamava algumas de burra, dava beliscões e colocava todo mundo de castigo.

Não que meus professores agissem assim. Eu agia assim. Eu tive alguns professores incríveis muito bons mesmo que eu não me lembro agora, também tive alguns péssimos que não saem da minha cabeça e a maioria sem a menor sensibilidade para me entender.

Quando eu entrei na escola tinha três anos. Minha família acabara de se mudar para o flamengo e fui colocada no jardim de infância no meio do ano. As aulas já haviam começado, a turma já estava formada e eu era a menor de todas as crianças e mais boba também. Ou seja: um prato cheio para ser sacaneada, ou sofrer bulling que está mais em moda. Me lembro perfeitamente - ou minha mãe me contou depois não sei bem - que no meu primeiro dia de aula quando tive vontade de fazer xixi eu me levantei, mexi as perninhas e os quadris e sambei (fui criada pela minha vó que quando via eu “sambar” reconhecia os sinais: “Patricinha quer fazer xixi, alguém leva ela no banheiro!”). Pois bem. Eu sambei. E nada. Eu não sabia falar quero fazer xixi. Na minha casa não funcionava assim. Eu dava os sinais e vovó me entendia perfeitamente. Eu estava dando os sinais mas ninguém entendia. Resultado: xixi na calça! Fiquei molhada de xixi, e o pior: humilhada com a turma toda rindo de mim. Já cheguei causando! Me levaram para a sala da direção e ligaram para minha mãe para ela trazer roupa extra. A mijona.

Ah, esqueci de dizer: era um colégio de freiras. Algumas dessas freiras davam aula para nós como a irmã Corina – que foi minha primeira professora – eu não me lembro dela de jeito nenhum mas minha mãe diz eu era muito apegada à irmã Corina e que ela era um amor. Gordinha, sorridente e usava um lenço na cabeça. Acho que ela era careca.

Nessa época eu não tinha livro. Eu tinha uma Xerox. (quer dizer, já existia Xerox nessa época ou era mimeógrafo? Estamos falando de 1976.) O importante é que a professora me fazia uma espécie de prova oral. Mostrando três desenhos, ela me pediu que eu apontasse qual deles era um ovo de páscoa. Eu tinha na minha frente desenhos indistinguíveis (de péssima resolução diga-se de passagem) com três opções. A primeira delas era um borrão preto que eu pensei: hummmm esse é o ovo de chocolate, já mordido e deve estar uma delícia. E sem titubear apontei. Esse é o ovo! Esse! Com tamanha certeza que nem precisei olhar as demais opções. Então a professora Corina, aquela freira careca e carinhosa, muito carinhosa falou pausadamente e com uma voz tão doce, mas tão doce – agindo como se eu fosse debilóide: Não! Essa é uma pedra. O ovo de páscoa está aqui. E me mostrou a outra opção de desenho indistinguível. Ih! Acho que me precipitei (é óbvio que eu não tinha esse vocabulário na época, deve ter sido apenas um: ih caguei). Realmente, olhando para o desenho com calma podíamos quase reconhecer o que deveria ser um laço de fita envolvendo o ovo. Um ovo de páscoa embrulhado. Me senti uma idiota. Não falei nada. Eu falava muito pouco nessa época. (Como mudei!).

Minha mãe era a rainha do sem noção e no final do ano fechei com chave de ouro a série micos no jardim de infância. Todas as crianças deveriam levar bolas coloridas para colocar numa mini arvore de natal. Mini árvores pedem mini bolas, certo? Não para a mamãe Pinho. Minhas bolas eram de tamanho normal. E minha reação (ou melhor, minha vergonha) foi flagrada pelas lentes de papai.

(INSERIR FOTO ARVORE DE NATAL)

A primeira vez que pisei num palco foi em um evento de primavera, onde as crianças se vestiam de flores (a minha flor era a roxa – “já causando”), se vestiam de sol, abelhas e de jardineiros. Alguma professora contava a história da primavera (da abelha que beijou a flor e amava o sol e a fecundação que veio com a cegonha da bruxa má... algo desse tipo) e as crianças cantavam canções primaveris.

Dessa apresentação resultou uma outra foto de papai onde já com o palco vazio, apenas eu no centro dele, uma professora me apontava. Vendo as fotos no álbum eu criei uma história: Eu tinha arrasado na peça do jardim, tinha sido a melhor e aquela professora estava elogiando o meu talento como flor. A melhor flor roxa do Colégio Nossa Senhora da Comiseração, uma espécie de Oscar do jardim de infância. Na verdade, no final da apresentação, todas as crianças saíram do palco – exceto eu que empaquei ali como uma mula enquanto aplicava um chilique e chorava de pânico. Uma loira então se levantou do público e perguntou: Quem são os pais dessa criança? Meu pai deve ter achado uma graça, porque ao invés de me socorrer, sacou essa foto.

(INSERIR FOTO DO PALCO SOLITÁRIO)

Fiquei nessa escola até a quarta série. E foi lá que desenvolvi um certo medo de freira, de igreja e de qualquer ambiente católico. (Até hoje eu sou incapaz de entrar numa igreja e olhar para aqueles anjinhos barrocos que para mim são sarcásticos sem ter taquicardia e ligeira falta de ar.) A escola passou por obras intermináveis – e eu desenvolvi uma alergia igualmente interminável. Eram tosses tão fortes que me levavam ao vômito. Para a mijona da turma era um plus no bulling. Foi então que comecei a ter leves desmaios pela rua.

Desmaios estes que me levaram ao neurologista e ao Gardenal. Remédio que era moda na época e virou símbolo de criança maluca. Dizia-se comumente: “Esse aí tomou Gardenal quando era criança!”. Acompanhada de risadas essa frase me causava medo, afinal eu tinha tomado mesmo e por cinco anos! Depois o Gardenal foi proibido por retardar a inteligência da criança – ou seja se sou assim a culpa não é minha, é do Gardenal.

Essa crise de Gardenal teve seu ápice no parque Guinle, onde a brincadeira das crianças era descer uma ribanceira sentada num papelão. isso tem um nome do tipo roller de bunda. esqui de papelão, para mim é quebra queixo. Eu não queria ir, não queri ir mesmo, mas.... incentivada pelo meu pai que queria que eu brincasse como um moleque de rua, que eu tinha que aproveitar a vida, me incentivando com toda a classe: deixa de ser fesca porra, tá mundo se divertindo. Nesse gás, eu peguei um papelão, meu gardenal vibrando na mente e comecei a subir a ribanceira, o penhasco da morte ou como insistiam alguns o escorrega maneiro. Lá em cima, no ponto onde as crianças desciam (crianças sem gardenal, lembremos disso), eu sentei no tal papelão. É preciso especificar o efeito Gardenal: eu vivia no mundo da lua como se diz, eu me distraía com qualquer coisa. Aparentemente ficava parada olhando o nada, quase babando. Vivia momentos de aparente “apagão” digamos assim. Monga total.

Mas vamos voltando ao momento do papelão. Papai incentivando: “Vem Patricinha! Vem Patricinhaaaaaa! Vem logo porra!” Ok, fui. Mas não fui para baixo como as crianças normais, eu fui para o lado, ou melhor eu fui para frente, eu fui dando cambalhota e rolando a ribanceira como quem é jogado para fora de um trem em movimento. Rolava e pensava: não devia ter me jogado desse papelão, eu sempre me estrepo, eu sabia que ia dar merda. Pensando e rolando a ribanceira. Quando você sofre um acidente assim, parece que tudo fica em câmera lenta, talvez o cérebro precise desse tempo para absorver o mico que você está pagando... E via a grama se aproximando em close e pensava que merda... Olhava o céu e pensava tem algo errado com essa descida, vi meu joelho se aproximar do meu nariz e estranhava: "não era para eu estar sentada?", até que bati com a cabeça numa pedra, quase quebrei o nariz, ralei o cotovelo todo. Saí do parque carregada e jorrando sangue. Resultado: mais fotos. Mais bulling.

(INSERIR FOTOS DO ACIDENTE)

Ainda no Instituto Nossa Senhora da Comiseração ou INSC - como era chamado. Toda vez que eu via essa sigla - espalhada pelo colégio todo eu associava com o INRI da plaquinha que estava escrito no Jesus crucificado que tinha na casa da minha vó. Como uma detetive, como uma senhorita Rosa com o candelabro no Hall eu concluí: Essa escola tinha alguma coisa a ver com aquele crime. peguei meu bloquinho de anotação e acusei as freiras “Foram elas!”.

Finalmente eu descobri o teatro. Era uma festa de dia das mães e um dos meninos resolveu escrever uma peça para homenagear as mães. A peça se chamava Alice na panela de feijão (ou de pressão). Eu sei que tinha feijão, tinha rato no feijão e tinha uma mãe de robe que entrava gritando. Eu fiz o papel da mãe. Foi um sucesso, minha mãe adorou. Fui super elogiada, aplaudida, diria até ovacionada. Para uma garota Gardenal aquilo era o paraíso e decidi: Serei atriz! Aqui me tratam bem! Não tenho fotos desse momento mágico. Mas imagine: eu estava gloriosa com um robe rosa, rolinhos e lenço no cabelo, maquiagem cafona e salto alto. Representando as mães dos anos oitenta!