Olhei a escola. Cinza. Era uma construção pré-moldada dessas que são criadas em caráter emergencial e que depois deveriam ser substituídas por prédios escolares. Estava ali há 20 anos. Eu não queria acreditar que passaria parte da minha vida ali mas uma placa confirmava essa expectativa: ESCOLA MUNICIPAL CLARISSE LISPECTOR. Gelei ao ler isso.
O portão gradeado e trancado por uma corrente me deu a sensação de olhar um presídio ou pior, os Portões de Hades. Me aproximando do portão, não vi viva alma naquele lugar. Sussurrei um "o que é isso!" então olhei para o meu pai já transformado numa poça vermelha de suor e calor, desta vez com os olhos arregalados mas para não perder o otimismo tentou com a última de suas forças soltar um: “É ótima a escola.” A voz dele não tinha nenhuma – nem uma mísera gota de convicção. Aquela frase Poliana soou constrangedora. Fiquei parada olhando - como dizer... - aquilo e não via vida naquele lugar. Não tinha luz acesa, nenhum movimento, nenhum barulho, nenhuma porta destrancada. Cansada e com ímpeto de desistir lancei mão de um: “Não tem ninguém aqui, vamos embora”. Meu pai se lembrou das palavras da secretária "Você tem que se inscrever na escola hoje" ficou apavorado que eu botasse tudo a perder por não assinar um papel e naquela altura do campeonato por causa da burocracia eu morresse na praia. Então com animada fúria começou a bater palma como os antigos “Ô de casa!”. Funcionou.
Não demorou muito e veio uma senhora loira sorridente e com uma dos maiores quadris que eu já tinha visto em toda a minha vida. Dona Bolota era inspetora da escola e morava no local. Em uma mínima sala com cozinha ela vivia com o marido e em outra sala (equivalente a meia sala de aula) era o quarto do seu filho. Ela também tinha alguns cachorros – que ela adorava mas que eram feios por demais. E que eventualmente mordiam alguma criança na escola. Mas isso é um capítulo a parte.
Entrando na escola pude observar que atravessando o portão, havia uma construção comprida, na entrada da escola, esse anexo à esquerda onde deduzi haver 4 salas. Esta construção destoava do resto da escola por ser.... uma construção normal, não era pré-fabricado. Essa diferença dava aquela construção uma cara de casa normal. tinha porta e janela. Janelas que davam para o muro da frente que era baixo. Janelas que ficariam fechadas para todo o sempre. Apesar do sufocante calor. Era melhor janela fechada que venda de mariola e outras coisitas más em plena luz do dia.
Em seguida reparei na enorme árvore com uma sombra que me pareceu um oásis naquele deserto ficava entre esse anexo e o começo do prédio original da escola. Depois eu descobri que era uma mangueira. Não consigo identificar uma árvore da outra, e isso já foi motivo de piada entre meus alunos.
Atravessando esse pátio, à direta ficava uma quadra de esportes. Ou melhor, um quadrado de cimento com duas traves de futebol que chamavam de quadra de esportes. O sol estava a pino e ali não batia nenhuma brisa. Aquele ar parado e seco que baixa a pressão e deixa a gente zonzo. Fiquei imaginando como um professor de educação física poderia ficar o dia inteiro trabalhando ali debaixo daquele sol. Me pareceu criminoso deixar alguém ali sem protetor solar e sombra. Os professores de educação física ganham adicional por insalubridade?
Na minha frente agora aparece uma parede de grades. Vamos atravessar essa segunda camada de grades que leva ao interior da escola. O interior da escola era escuro. Muito escuro. O próprio inferno, só que mais fresco. Um hall bem comprido decorado (decorado é o termo?) com dois bancos de cimento na lateral direita (desses que a gente vê nas praças) – que durante o período letivo seriam ocupadas pelas bundas gordas das mães desocupadas da comunidade. À esquerda, uma área fechada bem grande que servia de refeitório. Afinal tinha uma porta com uma placa refeitório.
Bem em frente a este corredor, uma sala aberta com a luz acesa e uma senhora mulata de óculos, alegre e sorridente me saudou com uma voz potente: “Você deve ser a nova professora de artes. Sou Florinda a diretora da escola.” “Sim, sou eu mesma. Meu nome é Patricia, esse é meu pai.” Meu pai sacou um lenço, deu uma belíssima enxugada no rosto e fez a linha simpaticão. Apresentei meu pai e disse que ele me fazia companhia por causa da contratura muscular, que eu tinha machucado a coluna. A diretora deu uma enorme gargalhada e completou: "Ah menina, esse colete aí é para coluna? Achei que era colete a prova de bala!" , "As pessoas usam colete a prova de bala por aqui?" disse rindo como uma piada. A diretora rindo mais alto ainda perguntou: "Você mora onde?" Eu respondi pela primeira e última vez: ipanema. "Ah, garota de ipanema. Tem cara mesmo. Ih você vai estranhar muita coisa por aqui. Vai achar pitoresco".
Meu sangue comunista misturado com a educação classe média burguesa fez uma salada emocional temperada a mimos de filha única e antes que eu respondesse qualquer coisa à altura, meu pai antevendo que eu estava ficando irritada e que o clima poderia esquentar e eu ainda não tinha assinado nada, se meteu na conversa agiu como um bom advogado de conciliação. Passando a mão no ombro da Dona Florinda (ai estou me sentindo a Chiquinha do Chaves agora), mudou drásticamente de assunto dizendo que a escola era ótima, muito limpa, que as paredes estavam bem pintadinhas e (pasmem!) Admirado de como era fresquinho lá dentro. D. Florinda sorriu. Meu pai estaria cativando-a Saint-Exupéry? Eu fiquei muda. Olhava ao meu redor e nada que ele falava me parecia possível. Ele estava num mundo paralelo? Fiquei perplexa.
No final deste hall, havia outro corredor transversal onde ficavam as salas de aula da escola. Seis salas para o lado direito (sendo três de cada lado do corredor) e para o lado esquerdo víamos outras salas – depois soube que eram as de vídeo, a dos professores, uma despensa, a casa da D. Bolota e os banheiros (4 no total. O de alunos separado em Feminino e masculino com 5 reservados cada e separado os banheiros dos professores. Um feminino e outro masculino cada qual com reservado e ducha).
Saí do profundo silêncio quando falei que estava com sede. A diretora apontou um bebedouro. Senti um nojo! Profundo nojo. Não queria colocar minha boca ali mas nem f... Só que eu não podia fazer a linha “fresquinha” logo de cara e causar um má impressão. Já antevia que seria chamada de a garota de ipanema por algum tempo. Meu pai vendo minha reação, faceiro soltou um “Ah que ótimo, vou beber também.” E foi até o bebedouro. Acionou a água. Um jato minguado saiu de lá. Desses que gente tem que colocar a boca bem perto e onde os mais nojentos chupam a água como se a torneira fosse um canudinho. Meu pai bebeu aquela água e ainda comentou: “Humm, está geladinha!”. Vem Patricinha. Vem! O tom de voz era o mesmo. Era a voz do Parque Guinle. Lá ia eu quebrar meu nariz novamente. E assim fui eu respirando fundo para dar um golinho naquela água. Vou acabar pegando hepatite aqui – pensei.
Depois de finalmente assinar a papelada e ouvir as saudações de boas vindas super animada da minha diretora, fui comunicada que eu precisaria voltar no dia seguinte só para assinar o ponto. Então eu levaria 2 horas e meia para assinar o ponto e mais duas horas e meia para voltar. Perderia meu dia inteiro SÓ par assinar o ponto.
Afinal não tinha nada para fazer na escola mas meu horário já contava desde aquele momento. Meu horário eram 16 horas semanais, onde deveria cumprir 12 em sala de aula e 4 na escola para reuniões, provas e principalmente para bater o ponto. A hora aula era de 50 minutos. Ou seja 16 horas para um professor na verdade são na verdade 13 h e 20 minutos. Como o turno tinha 6 tempos de aula, eu poderia fazer meu horário em dois dias e meio ou dois dias (de absoluto cabo a rabo, sem respirar nenhum tempo). Dona Florinda também me ofereceu uma meia dupla regência (6 horas aula extras por semana) – já que a escola tinha déficit de professor de artes. Eu trabalharia apenas três dias na semana e ganharia um pouco mais do que o salário inicial. Parecia uma excelente proposta. Achei ótimo. (Não sabia o que estava por vir) ...
Também fui comunicada que deveria participar da Colônia de Férias da região se quisesse ganhar meu salário de janeiro. Que esta colonia começaria na primeira semana de janeiro e que duraria o mês todo. Eu teria menos de 15 dias para me preparar para o trabalho. Mas não era opcional. Era obrigatório.
Sentindo que acabara sua missão, e para me tirar do estado de choque e da inércia, meu pai começou a se despedir para ir embora. E sugeriu que eu usasse o banheiro, afinal a viagem de volta era longa. usou "aquela voz". Me dirigi ao banheiro dos professores e a diretora gritou: "Vem pegar a chave". Voltei e me deparei com um pedaço de tubo de PVC marrom cuja ponta, amarrada por um arame enferrujado, pendia uma chave. Por segundos eu estranhei aquele objeto. Mas sabia o que era aquilo. Afinal sou freqüentadora de botequins e de pés sujos. Mas não reconheci de cara por estar totalmente fora do contexto. Isso é um chaveiro de boteco! Espero que o banheiro não seja também um banheiro de boteco. Lá vamos nós! - Tomei coragem e fui.
Passei pelo banheiro dos alunos e senti um cheiro azedo encruado. Fui até o banheiro das professoras e abri a porta. Ufa! Era decente. O chão não era de cimento como toda a escola, era de cerâmica. Na parede não tinha azulejo mas era “bem pintadinho” como meu pai havia dito. Uma pia com espelho e um reservado, além de outro com a ducha. Alguém toma banho aqui? Bem, deixa para lá. Fiquei feliz por ter papel higiênico. Fiz xixi numa posição quase de pé, dei descarga num cordãozinho que puxei e fui até a pia. Não tinha sabonete. Nojo. E se eu tivesse que fazer cocô ali? Nojo. Ainda bem que eu sabia como agir, afinal no boteco também não tem sabonete. E eu como pastéis que são fritos lá. Ai que nojo. Vamos lá... Passei bastante água nas mãos, esfreguei bastante e sequei a mão na calça jeans. Tranquei a porta e saí de lá. Anotei no meu caderninho da hello kit: Dica numero 1) preciso montar um kit higiene com lenço de papel, sabonete, toalha, escova de dente e pasta.
De volta à sala da direção, meu pai e a minha nova diretora já pareciam amigos de infância conversando às gargalhadas. Meu pai está rindo de quê? O que há aqui para rir? Eu estava quase chorando. A diretora então falou para eu assinar o ponto da semana já que eu morava muito longe e estava com a coluna machucada que não era necessário eu voltar naquela semana e piscou para o meu pai que me olhou com cara de "eu não tenho nada a ver com isso". Bom senso de D. Florinda ou “jeitinho” do meu pai?! O que importa é que gostei dela por essa atitude. Depois a adorei cada vez mais. É uma leoa tentando manter as rédeas incontroláveis daquele lugar. Além de ser generosa e preocupada com todo mundo. Saí de lá com um mini sorriso de alívio, dois beijos na bochecha e um: “Seja bem vinda!” animado de Dona Florinda que ainda arrematou: Seu pai é ótimo! e piscou novamente para ele. Nunca comentamos nada a respeito disso. Papai se despediu radiante, tinha cumprido seu papel de simpático e eu assinei o tal papel.
Dona Bolota reapareceu da escuridão e foi arrastando sua enorme buzanfa até a grade e abriu o portão para a gente sair. Já do lado de fora há alguns passos dali meu pai sorriu e me falou: “É ótimo aqui. Adorei a escola.” Eu o fuzilei com um olhar achando que ele só podia ter falado aquilo de sacanagem e perguntei como a gente ia embora dali. ele deu uma corrida e chamou a rainha da buzanfa novamente. Que de onde estava apenas se virou e aos berros explicou que devíamos seguir pela esquerda aquela rua até a altura da padaria e então virar para a direita e que essa outra rua ia dar na Avenida Brasil. Então ela perguntou para onde a gente estava indo. Já tinha percebido que ser a Patricinha, garota de ipanema naquele lugar não era uma coisa positiva e adotei a resposta que usaria daqui para frente quando me perguntavam onde eu morava: No centro!
D. Bolota arrematou que era para a gente atravessar a passarela e pegar o ônibus do outro lado da Brasil. Eu estava do outro lado do Brasil.
Fomos andando pela rua e eram casas muito simples, não havia asfalto nem calçada. Alguns raros carros – desses que não passam na vistoria do DETRAN – capengados com pessoas segurando portas ou amarrados com barbantes circulavam em alta velocidade. Seguimos por alguns minutos até chegar na tal padaria. Então chegamos a rua principal do lugar. Alguns moto taxis e uma pequeno comércio. Dali podíamos ver a outra escola – onde seria a colônia de férias. Era o único prédio do local, muito fácil de identificar. Papai ia falando coisas do tipo: “Que casa amarela bonita!” ou “Nossa a padaria é bem vermelha”. Acho que me tentava me dar dicas para lembrar do caminho quando eu voltasse para dar aulas e não me perdesse por ali.
Já na Avenida Brasil, o ponto de ônibus ficava na altura de um posto de gasolina. Meu pai: anota o nome desse posto que é para avisar pro motorista do ônibus onde você quer descer e não se perder quando vier trabalhar. Antes de atravessar a passarela comecei a ver as peculiaridades do local. Muitas bicicletas estacionadas na base da passarela. E motos cruzando a passarela normalmente.
Afinal como não tem transporte público ali as únicas opções são moto táxi e bicicleta. Para quem tem disposição. Para quem não tem porque está doente ou é idoso, o negócio é ficar em casa.
Atravessei a passarela. Morro de medo de passarela. Tenho um pouco de vertigem. E atravessar a Avenida Brasil para mim era como uma atravessar uma montanha russa. Me causava a mesma sensação. Antes de cruzar a passarela, olhei para trás. Ali do alto é que tive a dimensão do lugar que estava. Enorme. Um sem fim de casas de tijolos... Tudo muito pobre. Então subitamente eu compreendi: “Papai, isso aqui é uma favela!”