sábado, 16 de janeiro de 2010

5. o piolho

O piolho.

Eu não podia acreditar que aquilo era a minha nova realidade, então volta e meia eu tinha a sensação de que vivia um pesadelo e que a qualquer momento eu ia acordar no meu quarto com meu ar condicionado e alguém ia gritar: “Você estava na pegadinha da televisão, olhe as câmeras ali”. E o choque cultural era tão intenso que meu raciocínio se embaralhava de uma forma que eu me esquecia que era neta de comunista, artista e num surto eu tinha uma visão burguesa, pequena e diria mesmo escrota do que estava vivendo e principalmente dos que estavam ao meu redor.

Eu olhei para aquela massa de crianças pardas e sujas gritando no meu ouvido “ô tia, ô tia...”. Instintivamente segurei minha bolsa com força. Me lembrei dos pivetes da minha rua, os mesmos que queriam me assaltar. Fui tomada por um sobressalto. Será que vão me assaltar aqui? É melhor guardar bem essa minha bolsa. Alguns pivetes vinham falar comigo bem de perto e eu via aquelas bocas cheias de cáries – será que essa gente não escova do dente? Aí eu saía do surto e entrava em outro. “Coitadas, essas crianças não devem nem ter escova de dente. Eu preciso ensinar esse pessoal a escovar os dentes”. Arrumar um jeito de distribuir pastas de dentes... Será que poderíamos fundar um projeto onde dentistas pudessem vir aqui... Eu já fui um dente num evento no Rio Centro. Meu amigo era o Fio dental. Estou ficando louca! Não consigo mais raciocinar. Como é mesmo a meditação budista? Nam......

Ah, acalmei. As crianças continuavam gritando pela sala. Deixei gritarem à vontade. Me lembrei de uma professora de teatro que eu tinha na escola que deixava a gente correr e gritar sempre. Fiquei olhando o relógio para ver se o tempo passava. Eu ainda não assinei o ponto! Então veio um pivete, ou melhor, um moleque, quero dizer: uma menina com cabelos desgrenhados me dizer: “Tia, vamos brincar. Eles estão fazendo muita bagunça.” Olhei para ela e pensei: “fodam-se”. Mas ela me abraçou e eu vi nos olhos que ela queria brincar. Ela gostava de mim. Ela era fofa. Qual o seu nome? Michele – ela respondeu. Toquei no rosto da Michele e senti a sua pele suave de criança e pensei como a vida de ser tão pequeno podia ser tão dura. E vi aqueles cabelos desgrenhados... Me deu uma raiva! Como é que aquelas mães não tinham o menor cuidado com aquelas crianças. Dei uma abaixadinha no pixaim dela, tirei um grampinho do meu cabelo e coloquei no dela. Assim está melhor.

Depois descobri que a mãe da Michele não ajeita o cabelinho dela porque trabalha ajeitando os cabelinhos de crianças da zona sul de segunda a sexta e deixam aquelas crianças a mercê dos irmãos maiores e dos professores. Eu vinha até aqui cuidar dos futuros empregados da zona sul. Dos futuros caixas de supermercado, do futuro subemprego. O que seria do futuro de Michele? Aí o sangue comunista voltava mais vermelho do que nunca. E pulsava com Michele, vamos brincar!!! Vamos mudar isso, Michele precisa ter uma chance na vida!

Tudo isso me deixava com a pulga atrás da orelha. E comecei a coçar a cabeça. Puta que me pariu! Será que eu peguei piolho? Fiz um rabo de cavalo e antes de chegar em casa preciso lembrar de comprar um remédio de piolhos. Ai deus!!! Eu não quero ficar no meio dessa gente fedida!