sábado, 12 de dezembro de 2009

2. O que é preciso fazer para se tornar uma professora?

A vida de atriz não é nada fácil. O dinheiro é muito curto e as propostas de trabalho são eventuais. Se durante alguns meses eu ganhava um bom (na época eu achava bom) dinheiro participando de algum evento, outros tantos meses eu ficava em casa gastando aquele dinheiro todo (O que era rápido e fácil). Ficar desempregada e desesperada para mim era um estado normal. Para acabar com essa montanha russa financeira resolvi ter um plano B.

Não, eu não estava bêbada quando achei que a solução da minha vida seria virar professora municipal. Essa idéia foi do meu pai. Ele estava bêbado. (E lançou aquela típica ideia como pimenta no cú alheio). Os pais deveriam ser pessoas mais velhas, mais vividas, com uma percepção maior da vida. Assim eu pensava. (Até meu filho nascer) Meu pai conseguiu me convencer que fazer um concurso público era o melhor para mim. Eu teria estabilidade, salário todo mês, décimo terceiro e benefícios. E que já era hora de eu ter um emprego “decente”.

Quando você está desempregado, deve deixar sua dignidade de lado. preferencialmente ao lado do telefone, pegar sua agenda e avisar a todo mundo (que você mantenha boas relações) que você está topando qualquer parada. Dependendo do seu currículo qualquer parada pode ser: faxina, manicure, cuidar de criança, garçonete, babá de famoso, produção de teatro, projeto-escola, evento, teatro empresa, operação de som, de luz, assistente de maquiagem... Bem, eu já fui mosquito da dengue dentro de um ônibus em São Gonçalo.

A outra opção é procurar nos classificados um emprego “decente” no jornal. Essa é a opção para mim que é a mais vexatória. Acaba com a tua estima. Porque você descobre que seu Bacharelado em Artes Cênicas que demorou 5 anos para ser concluído vale menos que um curso técnico em datilografia (e estamos falando de 1993 onde este curso já não servia mais para nada). Ou seja, eu fiz um Bacharelado em porra nenhuma! É como se eu tivesse parado os estudos no ensino médio. Vamos ser humildes e ver o que o jornal tem a oferecer de nível médio. Vamos ver as opções: operador de telemarketing, secretária e puta. Humm... Nada legal. Um professor de teatro me contou que um dia ele andava por Copacabana e viu uma amiga que era bailarina clássica maravilhosa - que já tinha dançado no mundo todo mas já tinha uma certa idade - chorando no meio fio. Ela disse que no desespero do desemprego fez um teste para bailarina Go Go Girl na Prado Junior mas que não havia passado porque era “magra demais”.

Eu mesma, uma vez fiz um teste para um musical chamado “Band Age” estava na faculdade e o teste saiu no jornal. Fomos todos. No musical tinha uma personagem gorda, além disso eu já tinha montado esse musical no Teatro Amador e tive certeza: era para mim. Afinal eu já sabia as músicas de cor, tinha uma boa noção de dança e ia arrasar. Chegando lá no teste, mais de 300 pessoas para apenas um personagem do elenco principal – o resto seria teste para coro. O auge da humilhação quando a diretora me disse assim: “Querida, estamos precisando de uma gordinha e você é linda!”. O que? A vida toda tinha sido chamada de gorda e agora que eu precisa ser gorda eu era linda?? Comecei a gritar:”Mas eu sou gorda, olha aqui meu pneu! Eu tenho barriga! peso 58 kilos e tenho um metro e cinquenta e nove de altura, nem um metro e sessenta eu tenho!” Só de lembrar me dói! Que vexame...

O primeiro passo para concretizar minha ida para o inferno foi voltar para a escola e fazer aula de Licenciatura. Eu fiz uma Licenciatura Especial em Artes. O quesito básico era o bacharelado em Artes Cênicas, Música, Artes Plásticas e seus derivados como Design, Comunicação visual e etc. Essa galera era 90% da turma. A maioria das pessoas ter passado por experiência parecida – se lembrar de algum colega que ficava desenhando enquanto o professor dava aula, certo? Pois bem, essa turma era composta DESTES alunos. Todos desenhavam o tempo todo... Eu não queria ficar atrás e ficava fazendo minhas garatujas (Garatuja é um termo técnico para rabisco aleatório – termo este que aprendi na licenciatura e que uso agora exemplificando para quê esse curso serviu: Serviu para eu falar garatuja e achar que tiro onda com quem está lendo agora).

Garatujei durante um ano inteiro e ao final do curso saiu uma enorme convocação para dar aula no município. Direto. Estou com sorte, pensei na época (hahaha). Eram muitas vagas para professor de Artes Cênicas. (hahahaha)

Praticamente todos os alunos da minha faculdade fizeram a prova. Praticamente todos os alunos que passaram pela minha faculdade em épocas distintas fizeram essa prova. e era uma prova bem mal construída, antiga, dessas de decoreba de múltipla escolha e onde eu fiquei bem acima da média. Me achei um gênio e esperei o resultado da prova de redação. Esta prova de redação... acabou comigo... Me lembro que o título fazia um paralelo entre o Lula Presidente e a escola. Qual opinião dar sobre isso? Tive vontade de escrever que escola não servia para nada afinal já sabemos onde Lula chegou. Mas lembrei que podíamos ter resquícios da era Fernando Henrique e a valorização da formação universitária e fiquei sem saber o que falar e na dúvida saí falando um monte de merda, fiquei em cima do muro, não sabia o que eles queriam que eu pensasse e tentei dar uma enrolada básica. O que me garantiu uma nota péssima. Mas o suficiente para passar. Muita gente é reprovada, acredite se quiser.

Quando você se inscreve neste concurso, você de antemão marca com um x o local (ou melhor a CRE – Coordenadoria Regional Educacional) onde você pretende trabalhar. Marquei o x na segunda CRE que fica perto da minha casa. Porém este raciocínio foi seguido pela maioria esmagadora das pessoas, tornando uma vaga nessa CRE mais difícil do que passar em Medicina numa Universidade Federal. Fui recolocada numa lista geral que junto com minha nota merda de redação me garantiram um lugar na 9 ª CRE – (Campo Grande). Leia-se longe para caralho.

Tremi nas bases. Tinha passado. Era isso que eu queria, mas Campo Grande? Nunca tinha ido a Campo Grande e muito menos imaginava o que estaria por vir. Só sabia que Campo Grande era longe e grande. Minha reação foi seguida de uma contratura na coluna que me garantiu uma semana de repouso absoluto. E mais duas do uso de um colete imobilizatório que me deixava como uma policial do bope.

Pois foi no meio do repouso e ainda em choque que recebo o maldito telegrama com a data da convocação para assumir meu posto de professora. Meio aleijada, usando o colete e acreditando que ser o orgulho no papai me traria uma carona de taxi – convoquei Seu Arlindo para ir comigo tomar um drink no inferno. Ele ficou felicíssimo – disse depois eu ter passado nesse Concurso foi a melhor notícia do ano para ele (que ano de merda papai teve, pensei) – e resolveu ir comigo. Mas não fomos de taxi. Ele queria que eu aprendesse o caminho para voltar lá.

Papai tentava animadamente me mostrar a maravilha que seria ir de ônibus para Campo Grande. Que eu poderia levar um livro, ou um cd (Ainda usávamos walkman em 1995?), que eu podia ler uma revista, meditar enquanto utilizava o maravilhoso transporte público da nossa cidade. de colete!

Precisava chegar no local (pqp ou centro de Campo Grande) às nove da manhã, por isso acordei às 6 e meia com um orgulhoso pai me oferecendo café. Para mim ainda era noite afinal nessa época não dormia antes das 3. Bem grog de sono e anti-inflamatório, peguei meu colete imobilizador, apoiei o braço no papai e partimos em direção ao metrô até a Carioca de onde partimos para o Terminal Menezes Cortes. Papai queria apresentar a minha nova realidade. Ali comecei a ficar tensa. Aquele cheirinho de xixi... Aquela gritaria, aquele corre-corre, aquele barulho ensurdecedor de ônibus e o gás carbônico bombando no meio da minha cara já preta de fuligem! Eu andava como um zumbi - em choque anestesiada e meu pai animado me chamando. Lembrei da ribanceira do Parque Guinle. "Vem Patricinha!" Aqui é o ponto final do ônibus 1266. Centro - Campo Grande. Esperamos de 15 minutos a meia hora até que chegar o ônibus. Já havia uma fila de pessoas atrás de nós e um mini empurra empurra na hora de subir para o ônibus. (Note que estamos falando de um ônibus com ar condicionado, bem mais caro, menos procurado mas igualmente lotado) Entramos nele e meu pai anotou os horários de saída daquele ônibus para eu me organizar. (Para que anotar os horários se ninguém os cumpre??) Eu nem respirava, virei uma estátua.

Uma hora e meia depois chegamos ao local indicado - a sede da tal 9 CRE. Lá encontrei algumas amigas da faculdade – todas felizes de terem passado no concurso (depois encontrei as mesmas amigas em outras ocasiões e TODAS estavam arrependidas todas de licença, pensando em pedir exoneração). Então chegou o momento mais aguardado por mim. O qual eu deveria escolher minha escola. Eu tinha algumas ao meu dispor mas nenhuma referência de nenhuma delas. Era uma escolha cega. Os que optaram pela 9 CRE e que já conheciam o local, e que tinham notas melhores que a minha nota merda optavam na minha frente, escolhendo as melhores escolas (acredite se quiser, ainda tinha gente que tirava menos que eu e que ia para a 10 CRE - Santa Cruz).

Me senti como no programa Domingo no Parque do Silvio Santos – eu era a criança da cabine em frente a uma luz vermelha ouvindo música alta sem ouvir o que Silvio perguntava apenas respondia sim ou não a cada vez que a lâmpada vermelha acendia. Pergunta o Silvio: “Você quer trocar essa magnífica bicicleta por uma escova de dentes usada?” “Siiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim!”. A pergunta para mim foi: “Qual escola você quer ir?” Eu expliquei que morava no Flamengo e que não conhecia nada de Campo Grande mas que adoraria ir para uma escola que tivesse sala de teatro e que fosse fácil para eu chegar. E perguntei se ela não poderia me indicar uma escola legal boa de trabalhar. Santa ingenuidade! Eu falei que não conhecia nada de Campo Grande. Agora vejo que a secretária vira na minha ignorância uma chance de locar (enfiar no cú em terminologia educacional) essa trouxa que vos fala numa escola onde ninguém queria trabalhar e onde nenhum professor de Artes parava. Imagine o nível da escola!!!!!! Ela perguntou se eu não gostaria de ir para a Clarisse Lispector, disse que era perto da Avenida Brasil e que eu não precisaria nem entrar em Campo Grande (que tem esse nome exatamente porque é grande, aliás enorme). Mas a escola é boa? perguntei eu... Santa ingenuidade batman! Só agora compreendo os risinhos da secretária que estava locada (ou enfiada) ao lado. Foi então que ouço uma voz (acredito que era do demônio) a falar: a escola é ótima, eu mesma dei aula lá por vários anos. Você quer ir para a Escola Clarisse Lispector? Voltamos ao cenário do Domingo no Parque. Estou dentro da cabine. A lampada acendeu e eu gritei: Siiiiiiiiiiiiiiiim! Pararará, pararaá agora é hora de alegria, vamos sorrir e cantar... do mundo não se leva nada, vamos sorrir e cantar.... Obrigada Silvio! Obrigada Domingo no Parque!

Rapidamente barulhos de carimbo, tatá tatá... a burocracia funcionando e papéis para eu assinar. Muitas vias. E mais carimbos. Finalmente o trâmite estava concluído. A Secretária foi categórica: você não pode mais trocar de escola. Deve se apresentar nela agora e aqui está o endereço: Rua Volskwagen sem número – Carlotinha.

Agradeci por pura educação, peguei meu suado e feliz papai – afinal Campo Grande é um calor dos infernos – compramos água mineral e fomos procurar um ônibus para ir à tal Rua Volskwagen. Não havia. Estranho não é? É... Estranho, muito estranho. E fomos perguntando para os funcionários da CRE como chegar até lá só que ninguém sabia. Estranho não é? É... muito estranho! Retornei à Secretária carimbadora que explicou que a van para a Carlotinha passava na porta da escola. Por uma van leia-se uma Kombi ilegal. Mas onde pegar essa van kombi ? Na rodoviária ela respondeu. Fomos até a rodoviária de vans ilegais de Campo Grande. Perguntei para um senhor qual era a van que eu deveria pegar para a Carlotinha, ela apontou uma estacionada numa garagem. Fui até lá. O motorista da van kombi ilegal me disse que não conhecia essa rua Volkswagem, que nunca tinha ouvido falar nela e me perguntou o que eu ia fazer lá. Estranho não? Disse que ia para a Rua Volskwagem mas sabia qual era essa rua. Disse então que era professora e iria para a escola municipal Clarisse Lispector. Só então ele relaxou e sorriu: “Entra aí! Achei que vocês eram da polícia!"Oi? Palavras ao vento? Delírios de um motorista? Entramos naquela Kombi suja, enferrujada e lotada onde papai e eu chacoalhamos até a Carlotina. Nessa altura meu pai já era uma poça de suor, vermelho como um tomate e tentando manter um mínimo de dignidade naquela van. Tive sincera pena dele. Minha coluna quicava no imobilizador. "A senhora usa colete a prova de bala?" perguntou o cobrador da van. Não meu filho, é um colete para a coluna.

Continuamos chacoalhando, agora por uma estrada de terra sem asfalto e a kombi parou. Chegou professora. Chegou onde, se estávamos no meio do nada? Saímos da Kombi. Fiquei perplexa. Nessa altura do campeonato eu já imaginava que havia algo de muito podre no reino da Dinamarca mas ainda não precisava exatamente o quê.