sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

1. meu jardim de infância

O que leva uma pessoa a ser professora?

Quando eu era pequena, juntava as minhas bonecas e brincava de professora. Enfileirava a Barbie, a nenezinha, a Suzy e montava a sala de aula. Eu tinha um quadro verde e escrevia coisas sem sentido com giz colorido. Criava provas, fazia perguntas, arguições, gritava com as bonecas, chamava algumas de burra, dava beliscões e colocava todo mundo de castigo.

Não que meus professores agissem assim. Eu agia assim. Eu tive alguns professores incríveis muito bons mesmo que eu não me lembro agora, também tive alguns péssimos que não saem da minha cabeça e a maioria sem a menor sensibilidade para me entender.

Quando eu entrei na escola tinha três anos. Minha família acabara de se mudar para o flamengo e fui colocada no jardim de infância no meio do ano. As aulas já haviam começado, a turma já estava formada e eu era a menor de todas as crianças e mais boba também. Ou seja: um prato cheio para ser sacaneada, ou sofrer bulling que está mais em moda. Me lembro perfeitamente - ou minha mãe me contou depois não sei bem - que no meu primeiro dia de aula quando tive vontade de fazer xixi eu me levantei, mexi as perninhas e os quadris e sambei (fui criada pela minha vó que quando via eu “sambar” reconhecia os sinais: “Patricinha quer fazer xixi, alguém leva ela no banheiro!”). Pois bem. Eu sambei. E nada. Eu não sabia falar quero fazer xixi. Na minha casa não funcionava assim. Eu dava os sinais e vovó me entendia perfeitamente. Eu estava dando os sinais mas ninguém entendia. Resultado: xixi na calça! Fiquei molhada de xixi, e o pior: humilhada com a turma toda rindo de mim. Já cheguei causando! Me levaram para a sala da direção e ligaram para minha mãe para ela trazer roupa extra. A mijona.

Ah, esqueci de dizer: era um colégio de freiras. Algumas dessas freiras davam aula para nós como a irmã Corina – que foi minha primeira professora – eu não me lembro dela de jeito nenhum mas minha mãe diz eu era muito apegada à irmã Corina e que ela era um amor. Gordinha, sorridente e usava um lenço na cabeça. Acho que ela era careca.

Nessa época eu não tinha livro. Eu tinha uma Xerox. (quer dizer, já existia Xerox nessa época ou era mimeógrafo? Estamos falando de 1976.) O importante é que a professora me fazia uma espécie de prova oral. Mostrando três desenhos, ela me pediu que eu apontasse qual deles era um ovo de páscoa. Eu tinha na minha frente desenhos indistinguíveis (de péssima resolução diga-se de passagem) com três opções. A primeira delas era um borrão preto que eu pensei: hummmm esse é o ovo de chocolate, já mordido e deve estar uma delícia. E sem titubear apontei. Esse é o ovo! Esse! Com tamanha certeza que nem precisei olhar as demais opções. Então a professora Corina, aquela freira careca e carinhosa, muito carinhosa falou pausadamente e com uma voz tão doce, mas tão doce – agindo como se eu fosse debilóide: Não! Essa é uma pedra. O ovo de páscoa está aqui. E me mostrou a outra opção de desenho indistinguível. Ih! Acho que me precipitei (é óbvio que eu não tinha esse vocabulário na época, deve ter sido apenas um: ih caguei). Realmente, olhando para o desenho com calma podíamos quase reconhecer o que deveria ser um laço de fita envolvendo o ovo. Um ovo de páscoa embrulhado. Me senti uma idiota. Não falei nada. Eu falava muito pouco nessa época. (Como mudei!).

Minha mãe era a rainha do sem noção e no final do ano fechei com chave de ouro a série micos no jardim de infância. Todas as crianças deveriam levar bolas coloridas para colocar numa mini arvore de natal. Mini árvores pedem mini bolas, certo? Não para a mamãe Pinho. Minhas bolas eram de tamanho normal. E minha reação (ou melhor, minha vergonha) foi flagrada pelas lentes de papai.

(INSERIR FOTO ARVORE DE NATAL)

A primeira vez que pisei num palco foi em um evento de primavera, onde as crianças se vestiam de flores (a minha flor era a roxa – “já causando”), se vestiam de sol, abelhas e de jardineiros. Alguma professora contava a história da primavera (da abelha que beijou a flor e amava o sol e a fecundação que veio com a cegonha da bruxa má... algo desse tipo) e as crianças cantavam canções primaveris.

Dessa apresentação resultou uma outra foto de papai onde já com o palco vazio, apenas eu no centro dele, uma professora me apontava. Vendo as fotos no álbum eu criei uma história: Eu tinha arrasado na peça do jardim, tinha sido a melhor e aquela professora estava elogiando o meu talento como flor. A melhor flor roxa do Colégio Nossa Senhora da Comiseração, uma espécie de Oscar do jardim de infância. Na verdade, no final da apresentação, todas as crianças saíram do palco – exceto eu que empaquei ali como uma mula enquanto aplicava um chilique e chorava de pânico. Uma loira então se levantou do público e perguntou: Quem são os pais dessa criança? Meu pai deve ter achado uma graça, porque ao invés de me socorrer, sacou essa foto.

(INSERIR FOTO DO PALCO SOLITÁRIO)

Fiquei nessa escola até a quarta série. E foi lá que desenvolvi um certo medo de freira, de igreja e de qualquer ambiente católico. (Até hoje eu sou incapaz de entrar numa igreja e olhar para aqueles anjinhos barrocos que para mim são sarcásticos sem ter taquicardia e ligeira falta de ar.) A escola passou por obras intermináveis – e eu desenvolvi uma alergia igualmente interminável. Eram tosses tão fortes que me levavam ao vômito. Para a mijona da turma era um plus no bulling. Foi então que comecei a ter leves desmaios pela rua.

Desmaios estes que me levaram ao neurologista e ao Gardenal. Remédio que era moda na época e virou símbolo de criança maluca. Dizia-se comumente: “Esse aí tomou Gardenal quando era criança!”. Acompanhada de risadas essa frase me causava medo, afinal eu tinha tomado mesmo e por cinco anos! Depois o Gardenal foi proibido por retardar a inteligência da criança – ou seja se sou assim a culpa não é minha, é do Gardenal.

Essa crise de Gardenal teve seu ápice no parque Guinle, onde a brincadeira das crianças era descer uma ribanceira sentada num papelão. isso tem um nome do tipo roller de bunda. esqui de papelão, para mim é quebra queixo. Eu não queria ir, não queri ir mesmo, mas.... incentivada pelo meu pai que queria que eu brincasse como um moleque de rua, que eu tinha que aproveitar a vida, me incentivando com toda a classe: deixa de ser fesca porra, tá mundo se divertindo. Nesse gás, eu peguei um papelão, meu gardenal vibrando na mente e comecei a subir a ribanceira, o penhasco da morte ou como insistiam alguns o escorrega maneiro. Lá em cima, no ponto onde as crianças desciam (crianças sem gardenal, lembremos disso), eu sentei no tal papelão. É preciso especificar o efeito Gardenal: eu vivia no mundo da lua como se diz, eu me distraía com qualquer coisa. Aparentemente ficava parada olhando o nada, quase babando. Vivia momentos de aparente “apagão” digamos assim. Monga total.

Mas vamos voltando ao momento do papelão. Papai incentivando: “Vem Patricinha! Vem Patricinhaaaaaa! Vem logo porra!” Ok, fui. Mas não fui para baixo como as crianças normais, eu fui para o lado, ou melhor eu fui para frente, eu fui dando cambalhota e rolando a ribanceira como quem é jogado para fora de um trem em movimento. Rolava e pensava: não devia ter me jogado desse papelão, eu sempre me estrepo, eu sabia que ia dar merda. Pensando e rolando a ribanceira. Quando você sofre um acidente assim, parece que tudo fica em câmera lenta, talvez o cérebro precise desse tempo para absorver o mico que você está pagando... E via a grama se aproximando em close e pensava que merda... Olhava o céu e pensava tem algo errado com essa descida, vi meu joelho se aproximar do meu nariz e estranhava: "não era para eu estar sentada?", até que bati com a cabeça numa pedra, quase quebrei o nariz, ralei o cotovelo todo. Saí do parque carregada e jorrando sangue. Resultado: mais fotos. Mais bulling.

(INSERIR FOTOS DO ACIDENTE)

Ainda no Instituto Nossa Senhora da Comiseração ou INSC - como era chamado. Toda vez que eu via essa sigla - espalhada pelo colégio todo eu associava com o INRI da plaquinha que estava escrito no Jesus crucificado que tinha na casa da minha vó. Como uma detetive, como uma senhorita Rosa com o candelabro no Hall eu concluí: Essa escola tinha alguma coisa a ver com aquele crime. peguei meu bloquinho de anotação e acusei as freiras “Foram elas!”.

Finalmente eu descobri o teatro. Era uma festa de dia das mães e um dos meninos resolveu escrever uma peça para homenagear as mães. A peça se chamava Alice na panela de feijão (ou de pressão). Eu sei que tinha feijão, tinha rato no feijão e tinha uma mãe de robe que entrava gritando. Eu fiz o papel da mãe. Foi um sucesso, minha mãe adorou. Fui super elogiada, aplaudida, diria até ovacionada. Para uma garota Gardenal aquilo era o paraíso e decidi: Serei atriz! Aqui me tratam bem! Não tenho fotos desse momento mágico. Mas imagine: eu estava gloriosa com um robe rosa, rolinhos e lenço no cabelo, maquiagem cafona e salto alto. Representando as mães dos anos oitenta!